27 maio, 2006

Saudades















(imagem de uma rua de Lisboa que ganhei do amigo Hay especialmente para postar junto a esta poesia)

Tenho saudades...
daquele pôr-do-sol avermelhado,
daquelas tardes de prosa nos galhos da ameixeira
daqueles cachorros, tão pequenos, tão grandes
da imaginação que tornava os dias mais coloridos
dos lápis de cor e canetinhas que coloriam os desenhos
e inventavam personagens, estórias e novas emoções
das musiquetas cantadas sem pudores, com todo coração
dos acampamentos e fogos de conselho escoteiros
das brincadeiras de queimada no recreio da escola
das histórias que minha avó contava
do meu primeiro beijo
dos bolinhos de chuva do meu avô
de andar de pés descalços e
tomar banho de chuva até ficar com as pontas dos dedos murchas
de ficar a tarde inteira no clube e chegar em casa morrendo de fome
de brincar de esconde-esconde com os primos na casa de praia da minha avó
de ganhar estrelinha na escola por nota boa e bom comportamento

tenho saudades de mim...

sou, por herança, sonhadora
por isso revejo minha infância, pelos olhos de minha filha
e o que de melhor posso desejar
é que a infância dela seja
tão feliz quanto a minha!

26 maio, 2006

Muitas vidas


Marco ficou na ponta dos pés. Apesar de estar maior do que no mês anterior (sua mãe vive dizendo que cresce feito batatinha...), não conseguia enxergar através da janelinha da porta. Olhou pra trás, e, como não via ninguém, adentrou o quarto onde seu avô, já muito pálido “pela falta de sol”, como explicava. Estava recostado, lendo.

Seu Savassi olhou por cima dos óculos, e foi como se o sol se abrisse num dia nublado... seu sorriso expressou sua alegria ao ver seu neto tão amado. “Já é quase um homem”, pensou.

O filho de sua única filha se aproximou e, como sempre fazia desde pequeno, beijou-lhe a testa.

A conversa entre eles, apesar da tamanha diferença de idade, fluía. Sempre tinham muito a dizer e contar um ao outro. Eram bons amigos. E dessa vez não foi diferente: Marco queria saber como seu avô conhecia tantos lugares e sabia tantas coisas do mundo...

Foi então que seu Savassi contou-lhe que, durante muitos anos, vivera em países distantes, conhecendo lugares surpreendentes e línguas e culturas maravilhosas...

Sua primeira paixão, a França. Contou-lhe sobre Paris, seu cafés, suas gente. Depois, discorreu sobre o Egito, com suas pirâmides, seus monumentos e toda a história e os mistérios contidos lá. Falou sobre a Inglaterra, a Índia, e muitos outros países com riqueza de detalhes. Mencionou as comidas, os cheiros, as artes, a música, as enebriantes sensações.

Em sua imaginação, Marco fez uma rápida viagem, na qual visualizava cada ponto turístico, imaginava as pessoas, os costumes, as diferentes línguas...

Estava admirado. Sabia que seu avô tinha muita cultura, mas também sabia da situação financeira da família. Como seu avô poderia ter ido a tantos lugares? Conhecer tantas línguas? Ter experimentado tantas comidas diferentes? E por que nunca lhe contara nada? Nem vovó e mamãe! Por que nunca comentaram nada com ele?

Ele precisaria de muitas vidas para tudo isso, concluiu.

Vendo o questionamento no olhar de seu neto, Savassi pousou um olhar pensativo no horizonte e, como se estivesse recordando bons momentos, disse-lhe:

- Venha cá, meu filho. Quero dar as passagens para que você possa também conhecer tantos lugares. Está naquele canto. Vá até lá e pegue.

Marco não pode conter a ansiedade e correu ao local indicado pelo avô, chegando a uma pilha de livros. Os títulos, os mais variados: “Conheça Paris”, “Viaje à Europa sem sair do lugar”, “Mistérios do Taj Mahal”,...

Marco compreendeu. Virou-se para seu avô. Queria agradecer-lhe... mas este já havia partido para sua última viagem...

24 maio, 2006

Cinco manias

Mania
[Do gr. manía, 'loucura'.]
S. f.
1. Psiq. Síndrome mental caracterizada por exaltação eufórica do humor, excitação psíquica, hiperatividade, insônia, etc., e, em certos casos, agitação motora em grau variável.
2. Psiq. Uma das duas fases alternativas da psicose maníaco-depressiva (q. v.).
3. Fig. Excentricidade, extravagância, esquisitice.
4. Gosto exagerado ou imoderado por alguma coisa; obcecação resultante de desejo imoderado
5. O alvo desse gosto ou desejo
6. Mau costume; hábito prejudicial; vício
7. Idéia fixa doentia; obsessão
(Dicionário Aurélio – Século XXI)

Confesso que fiquei um pouco pensativa após ler a definição apresentada pelo Dicionário, e achei que meu caso se enquadra apenas no nº 3... é o que espero...rsrs
Demorei a responder ao desafio da
Carol, feito em 10/05, não apenas por estar ocupadíssima e sem tempo para escrever, mas também pelo fato de não ser fácil elencar cinco manias, isso sem contar que não é fácil distingui-las dos defeitos ou das qualidades... O fato é que não é fácil parar pra pensar em si próprio e a forma como se tem caminhado nesta jornada chamada vida...

Então lá vai, as Top 5:
1. A primeira, até meio incomodativa, é a mania de escrever “quase” tudo em papeizinhos pequenos: telefones (sem colocar o nome da pessoa ou lugar, é claro), recados, idéias, e-mails, compromissos, endereços de sites, etc, etc, etc...
Não que eu não tenha agenda... tenho sim. Duas. Mas o fato é que obsessiva e compulsivamente, escrevo tudo isso em papéis de post-it, memo cards, inclusive com estampas da Hello Kitty ou do Snoopy (que charme...) ou qualquer cantinho mesmo, valendo até pedaços de envelopes ou cantinhos de contas a pagar... e vou colocando na bolsa... até que chega um momento em que a coitada quase não fecha mais... daí, pego um por um, o que é importante anoto na agenda (viram a utilidade dela?!?) e o que não é mais, jogo no lixo... e sinto-me muito aliviada por ter uma bolsa prontinha para voltar a encher novamente!!!

2. Não poderia deixar de mencionar a mania que tenho de ficar olhando pro nada e coçando a cabeça, tentando decifrar a vida e pensando nela... Não raro, vem alguém e me dá um tapa na mão... “Para com isso!!”... e eu olho bem pra pessoa e ignoro, voltando a coçar a cabeça, fazendo cara de indignação...

3. Mania de tentar fazer várias coisas ao mesmo tempo... o que na maioria das vezes consigo, mas que nem todos têm paciência de presenciar... rs Acho que a verdade é que tenho mania de querer “abraçar” o mundo, ou seja, quero sempre aprender alguma coisa nova, trabalhar todo o tempo, conhecer pessoas e estar sempre em dia com tudo... isso pode parecer bom, mas nem sempre o é... muitas vezes, falta tempo para cuidar de mim mesma, meditar, respirar fundo, sentir a brisa da noite e observar as estrelas...

4. Mania de ser extremista, sim é sim, não é não. Não costumo dizer sim, querendo dizer não ou vice-versa (a não ser em situações especialíssimas, que prefiro não mencionar, rsrs) Sou extremista também nas relações pessoais, não dou beijo, abraço em quem não gosto, tampouco falo palavras carinhosas, não faço política nem pagando, não importa quem seja...

5. E assim como Maria (Milton Nascimento)... possuo a “estranha mania de ter fé na vida”... Acredito nas pessoas, no potencial que têm de serem melhores, na integridade do ser... é claro que já levei muitas rasteiras, mas mantenho pensamentos confiantes, rs.

Nossa! Nem acredito que consegui!!!
A verdade é que isso gerou discussões virtuais e reais, com todos querendo me ajudar a escolher as minhas, exemplificando as suas... Enfim... quem me conhece sabe que cinco manias é pouco para me definir... mas todo mundo também sabe que ser normal não é nada legal... e que de médico, advogado e louco, todo mundo tem um pouco! rsrs

16 maio, 2006

Estrelas














(Ilustração: Janelle Hughes)

Estrelas
Que encantam minha alma
Deixem-me tocá-las
Apenas por um instante

Deixem-me sentir
O poder da vossa luz
A imensidão do vosso encanto
A dualidade de vosso ser

Luz refletida nas copas
Destas mudas testemunhas
Transmutadas de sementes
Regadas pelo orvalho
das cadentes
Estrelas...

14 maio, 2006

Ser mãe















Ser mãe
É ser contagiada pela paz
É ser acometida de amor intenso
É ter todas as células cantando em uníssono
É ter lágrimas expressando o inexplicável
É ter sorrisos calando as surpreendentes descobertas
É ter todo o dia a certeza de que
Plantando a árvore
Ou escrevendo o livro...
Nada no mundo poderá chegar perto
Da alegria e insuperável emoção
De ser o ser da criação
Traduzida na palavra
Mãe

09 maio, 2006

Sofrimento

(Ilustração: oleo sobre tela - Ellen Reinkraut - "Pain & Suffering")


Sofrimento
combustível para o burilamento
pedra mestra das reviravoltas da vida.

Dor
Que toca os corações,
molda o caráter,
afina as cordas do espírito.

Através da dor,
muitos se unem,
muitos se perdoam,
muitos se reencontram.

Quem já sofreu,
Passa a valorizar o amor,
a união
e o equilíbrio.

A dor faz crescer, amadurecer.
A dor faz o amor se fortalecer.
A paz aflorar no mundo e dentro de cada ser.

03 maio, 2006

Um raio de sol



Nem sempre temos noção do significado das pequenas coisas da vida. Atos, palavras, pensamentos que transformam o universo. Posturas ante situações que, se pensadas, refletem mais do que gostaríamos de mostrar de nós mesmos...
A reflexão que se faz ao caminhar pode ser considerada uma das melhores terapias, verdadeira meditação do dia-a-dia.
Ana passava pelas pessoas, pelos lugares, muitas vezes sem os notar, submersa em pensamentos. Mas havia uma pessoa, que ela sempre notava. Um velho, mendigo, sentado no chão, ao lado de sua cadeira de rodas. Tinha um olhar tranqüilo e um meio-riso constante, os quais tornavam seu semblante um tanto curioso.
Duas vezes por semana atravessava aquela praça e, ao passar pelo velhinho, sorria. Dava um daqueles seus sorrisos mais bonitos. E ia-se embora.
Podia chover, que lá estava ele, com a mesma expressão fagueira e amistosa. E, muitas vezes, Ana sentia-se mal por não ter nada a oferecer ao tão sofrido senhor.
Certa vez, estava muito apressada e, como um temporal se anunciava, decidiu correr até seu destino... porém, ao passar pela praça, notou a ausência de algo. Parou, olhou ao redor, e notou que aquele bondoso e necessitado senhor não estava ali.
Deu de ombros, “deve ter ido se esconder da chuva”, continuou sua corrida.
Passou-se uma semana e a ausência dele a inquietava. Após vários dias úmidos e frios, Ana avista-o de longe.
Desta vez, além do costumeiro sorriso Ana pergunta-lhe a razão do desaparecimento. Este a responde com outro sorriso e depois completa: “Estava muito adoentado. Pneumonia. Quase não agüentei desta vez. Mas eu tinha uma razão muito forte para melhorar e voltar para cá”.
“E qual seria uma razão muito forte para alguém desejar voltar para as ruas, para mendigar?!”, pensou Ana, atônita. E arriscou perguntar:
“E que razão foi essa?”
“Não poderia morrer sem nunca mais ver o teu sorriso”...
Os olhos de Ana encheram-se de lágrimas, e seu coração parecia que ia pular pela boca... Como um estranho poderia dar tanto valor ao seu sorriso? Como um homem, aparentemente rude e ignorante, poderia ter tamanha sensibilidade?” Às vezes ela se achava meio boba, pois sorria para todos, inclusive desconhecidos... adorava sorrir para as crianças, pois estas, com a inclusão de alguns velhinhos, as únicas a rebaterem com outro.
Depois deste dia, Ana nunca mais o viu, mas a memória dele ainda vive em seu coração, principalmente por ter-lhe mostrado o valor de pequenos gestos, como o sorriso, que pode ser o único raio de sol na vida de um ser, que só quer ser humano...

02 maio, 2006

Ciranda da vida

Roberto acordou, sua cabeça doía. Olhou ao redor, buscou o marcador do relógio. Deu um salto! “Meu Deus! Perdi a hora!” Levantou-se, bufando, e entrou no chuveiro de pijamas mesmo. Sabia que não podia demorar mais, tinha uma reunião importante.

Cinco minutos, terminou o banho. “Cadê minha toalha?” Chamou sua mulher. Nada. Gritou pela toalha. O silêncio continuava. “Puta merda!” Foi buscar a toalha, batendo os pés e esbravejando.
Passou pela cozinha antes de sair, queria tomar um café. Mas... “onde está Marianna? Cadê o cheirinho gostoso de café que emanava pela casa todos os dias? E o pão quentinho recém buscado da padaria?”

“Deixa pra lá... estou com pressa”.

No caminho pro trabalho, lembrou-se de sua vida quando pequeno. Morava no interior, não tinha nada, não era nada. Resolveu tentar a vida na cidade grande. Foi quando conheceu Marianna.

Ela apareceu-lhe primeiramente em sonhos. Depois, em carne e osso. Parecia uma visão angelical... suave, serena, inteligente. Tudo o que sempre desejara em uma mulher. Perfeita. Perguntava-se como poderia tê-lo amado à primeira vista... Mas amou. E era sua mulher.
Pensava nas artimanhas que criou para mantê-la junto dele. Lembrou-se de todas as vezes que quis dizer-lhe que a amava, que ela era a mulher da sua vida, mas não sabia por quê nunca conseguia. A palavra engasgava. Trancava-lhe a garganta.

Por causa disso, plasmou uma barreira em torno de si. Foi aí que começou a perdê-la... Mas ele não sabia disso. Não queria saber.

Agora se perguntava por que estaria a pensar nisso. Logo hoje, que estava atrasado. Precisava se concentrar. Afinal, tinha uma reunião importante.

Marianna não havia lhe deixado bilhete. “O silêncio dirá tudo, pois no silêncio, cabe tudo. E nada”.

Quando voltou pra casa, transtornado pela reunião que não fora muito bem sucedida, pensou nos braços de Marianna, naquele abraço que tirava toda sua inquietação, naquela boca que beijava a sua como se fosse a primeira vez.

Mas Marianna não estava lá. Não havia cheiro de janta. Não havia seu perfume no ar. Tampouco suas palavras de amor.

O chão continuava manchado da água do banho da manhã. As flores estavam meio desmaiadas pelo calor e abafamento do apartamento. Marianna não estivera ali, constatou. “Será que arrumou um amante”?, perguntou-se.

A noite chegava e ele, sem notícias. Telefonou para o celular dela, mas o aparelho estava desligado. Ligou para amigos, nenhuma notícia. Encontrou o número de uma colega de trabalho e teve que sentar para conseguir digerir a notícia: “Marianna pediu demissão ontem pela manhã. Você não sabia?”

Roberto nem se despediu. Desligou o telefone e deixou-se ficar inerte, perdido em seus pensamentos. Refez os últimos passos da esposa. Lembrou-se do abraço e do silêncio da noite anterior.

“Marianna foi embora. Perdi seu amor, como ela havia me avisado.”

Por um momento, Roberto sentiu alívio. Não precisaria mais demonstrar força, poder. Não precisaria mais procurar as fraquezas na mulher para diminuir sua auto-estima. Não precisaria mais buscar motivos para mostrar-lhe que só ele poderia amá-la na vida.

Mas os dias se passaram, as roupas acumulavam no banheiro, estava definhando.
Porém, do que mais sentia falta era o perfume que Marianna deixava ao passar. Sua inteligência e habilidade em resolver problemas. A forma como ficava brava, com um leve tom róseo em suas bochechas. Sua indignação com a injustiça do mundo.

Não imaginava quão arrebatador era seu amor por aquela mulher.

Tentou buscar apoio nos amigos. Na boemia. Em outras mulheres. Nada preenchia o vazio do seu ser.

Já havia perdido vinte quilos. Já havia perdido a noção de tempo. Via Marianna em todas as mulheres, mas também não a via em nenhuma.

Entrou em desespero. Como continuaria a levar sua vida agora? Que detalhe havia perdido? Como não havia percebido o que estava a acontecer?

Só Marianna sabia a resposta.

Deitou-se na cama. Aquela mesma cama onde ainda havia resquícios do cheiro de sua amada. Aquela mesma cama onde dividiram, um dia, um amor incontido, inacabável, insaciável. Esperaria, ali mesmo, a resposta.

Mas ela não veio...

Em seu enterro, somente o padre e seu cachorro.